O gosto amargo da água doce

“Temos que construir homens novos. Que sejam como a água: transparentes e em movimento”. Che Guevara

20/03/2024 às 18h30 Atualizada em 20/03/2024 às 22h27
Por: Redação
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Se a “pátria é d’água”, resta-nos questionar a abundância, a acessibilidade, a qualidade desta e os propósitos governistas que a manipulam nos segredos de gabinetes - Foto: Floriano Lins
Se a “pátria é d’água”, resta-nos questionar a abundância, a acessibilidade, a qualidade desta e os propósitos governistas que a manipulam nos segredos de gabinetes - Foto: Floriano Lins

“Mar Dulce” ou água doce - denominação às águas do rio Amazonas pelo explorador espanhol, Vicente Pinzón, nos primórdios da colonização brasileira. A propósito, o conceito o qual defendemos rima com água potável, de qualidade saudável para consumo humano e animal, livre de contaminações por microrganismos e/ou substâncias tóxicas. Bem diferente das intenções semânticas exploratórias de Pinzón (é o que penso). No entanto, é importante lembrar: a poética da docilidade sobre nossos recursos hídricos é mais um acalanto, uma estratégia seducionista à embriaguez das massas analfabetizadas, indiferentes ao amargor sistêmico, reféns do tal desenvolvimento sustentável.

É histórico e inegável: o rio Amazonas é o maior do mundo em volume de água potável. Cobre cerca de sete milhões de quilômetros quadrados, abraça ecossistemas aquáticos e terrestres com 20% de toda a água disponível e sustenta a maior diversidade de organismos vivos da Mãe Terra. Em tempos de cheia assume-se com autonomia: arrasta barrancos, transborda irreverente sobre margens devastadas sob intuito de chamar a atenção das populações ribeirinhos aos cuidados com a preservação e conservação dos biomas naturais - fontes de vida e sobrevivência.

Não por acaso, em 2002, o Poeta Thiago de Mello, através da obra, “Amazônia, Pátria d’Água”, reverenciara a potencialidade, os mistérios deste grande Rio e a respectiva importância à saúde planetária. Apesar das reverências/referências anunciadas pelo Poeta aos privilégios de nossa matriz caboca, afirmo: já não usufruímos do direito de posse e de administração patrimonial enquanto povos que aqui habitam. Nossos destinos estão sob a mira do estado dominante, da barbárie capitalista mascarada de discursos docilizados e de invasores dos direitos fundamentais de populações originárias. Portanto, se pleiteamos qualidade de vida digna, saudável, urge trazer a questão ao debate social para devidas e justas intervenções.

Com base na realidade que experienciamos na Amazônia, o processo de mercantilização sobre a base de sobrevivência de todos os seres avança indiscriminadamente. Dentre os bens naturais saqueados diariamente (de forma sutil e institucionalizada) pontuamos a água - concebida universalmente como direito humano inalienável. Tal institucionalização passa pelo filtro/sem filtro das interpretações e interesses governistas, capitalistas e se incorpora no discurso da mera “necessidade humana”. Prevalecem as leis da oferta e da procura: a água potável, dita doce, deixa de ser direito universal dos povos, de todos os seres vivos e passa a direito de consumidor, de quem pode pagar; virou mercadoria, fonte natural de capital fácil.

A profecia já é visível nos interesses de mercado camuflados na discursalha protecionista sobre a Amazônia. Em testemunho, a corrida acelerada pela privatização da água. Segundo estatísticas, somente 0,7% de água potável/doce é disponível ao consumo humano; a cada dia o líquido natural ganha preço e se transforma em objeto de cobiça mundial; em privilégio de quem pode pagar e dominar o mercado hídrico.

Em Parintins/Am, situada à margem do grande rio Amazonas, a 369 km de Manaus, os primeiros clamores pelo direito à água de boa qualidade ecoaram nas ruas, aos 22 de março de 2005, Dia Mundial da Água, através da Frente Ativista Parintins Cidadã. Naquele dia, a Frente Ativista ocupou a Câmara de Vereadores cobrando respostas salutares ao direito à saúde da população via manifesto: “Chega de M’Água!”. A ação fundamentara-se em laudos fornecidos pelo LACEN (Laboratório Central de Saúde Pública) comprovando os níveis de contaminação da água fornecida aos consumidores, através do SAAE (Serviço Autônomo de Água e Esgoto).

Como de costume, a Casa Legislativa contestou as reivindicações da comunidade. Na sequência, a partir do volume de pressões à CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) hoje, Serviço Geológico do Brasil (SGB), confirmam-se os dados apresentados na manifestação popular. Em resposta, disfarces de melhorias sem justa e imparcial fiscalização: lacração, substituição e perfuração de novos poços e etc. Segundo a Bíblia Cristã (Lc.: 12:2-3), “Nada há encoberto que não venha a ser revelado...[...]”. Por esse olhar, em dezembro de 2023, durante audiência pública sobre a qualidade da água de Parintins, a verdade boia transparente: a água consumida pelos parintinenses continua com metais pesados: alumínio, chumbo, amônia e coliformes fecais e totais (essência de cocô).

Do complô administrativo, silêncio misturado com arranjos seducionistas! A hipocrisia poética da “água doce” contaminada de metais pesados e cocô persiste e o parintinense ainda paga para beber. Vale ressaltar: a população urbana, vítima da fecalização da água doce, aproxima-se de 96.000 habitantes. A taxa básica cobrada mensalmente pelo SAAE gira em torno de R$ 30,00 por família consumidora... Dados dessa natureza são desviados da atenção da população, em maioria, dominada pela politicagem, pelo esmolismo, pela indústria da subserviência. Logo, por conta da desinformação estrutural/funcional produzida intencionalmente por setores responsáveis pela segurança e defesa da vida, direitos passam desapercebidos.

Outro dado que nos cutuca é o mito da fartura da água na Amazônia. Nas colônias de terra firme, por exemplo, durante o período das chuvas, em raros espaços, comunitários dispõem de um riacho escasso, já comprometido. Durante o verão, “é pé na estrada!”. A Gleba Vila Amazônia, no interior de Parintins, é referência para comprovação do exposto. A cabocada dessas áreas é consolada com gotas amargas de ilusão. Sem dúvidas, hoje, o Poeta Thiago de Mello, faria um adendo sobre a “Pátria d’Água”. Então, se a “pátria é d’água”, resta-nos questionar a abundância, a acessibilidade, a qualidade desta e os propósitos governistas que a manipulam nos segredos de gabinetes.

Apesar das comprovações e da indignação subversiva por Justiça social, a água doce contaminada, hidrocida, hidro alienante, corre livre e solta nas torneiras da Capital Brasileira do Folclore, Terra dos Bumbás.

É a hidromáfia! Combatê-la exige engajamento, leitura crítica da realidade e transgressão às transgressões mercadológicas. Mais um 22 de Março, Dia Mundial da Água! Oportunidade de se repensar o tal modelo desenvolvimentista e implantar modos de vida digna, sustentáveis para o Planeta. É Che Guevara quem atiça nossa fogueira: “Temos que construir homens novos. Que sejam como a água: transparentes e em movimento”.

*Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

 

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