Acordes por Libertação

Dá-me a flauta e canta! O canto é o segredo da vida eterna / e o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência. (Gibran Kalil Gibran)

01/03/2024 às 19h22 Atualizada em 01/03/2024 às 19h29
Por: Redação
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Esperançar com ativismo é o sopro insistente de nossa flauta pelo direito à vida com dignidade - Foto: Floriano Lins
Esperançar com ativismo é o sopro insistente de nossa flauta pelo direito à vida com dignidade - Foto: Floriano Lins

O cantarolar das cigarras, na madrugadinha chuvosa, acolhe o mês de março celebrando memórias matrifocais milenares de resistência e autonomia. Embora tantas vezes silenciadas e reprimidas, mulheres despertadas assemelham-se a cigarras: em tons diversos e estratégicos entoam seus cantares anunciando o direito à livre expressividade. Impõem-se ao padrão patriarcal, enfrentam madrugadas sombrias, quebram silêncios e cantam o “segredo da vida eterna”: ressuscitar em novos corpos memórias libertárias para um agir interventivo e perene. É a canção dos esperançamentos por Justiça Social. É a celebração da transcendência após expansão dos cantares.

Em testemunho, o “Si” agudo e vibrante das misteriosas cigarras reconstrói a velha fábula associada às mulheres - julgadas e condenadas por quebrarem protocolos machistas, por dominarem suas “flautas” e soprarem ao universo ritmos de liberdade. A respectiva alegoria mulheres/cigarras nos leva ao 8 de março - Dia Internacional de Luta das Mulheres-, já vibrando em nossos compromissos feministas. Portanto, a data nos propõe trazer registros históricos no sentido de um melhor entendimento sobre os porquês das lutas incessantes das mulheres por autonomia e libertação.

A propósito, são ecos milenares que atravessam tempos, templos, dogmas, modelos, ritmos sociais e retumbam insistentemente pelo respeito à vida em sua essencialidade e diversidade independentemente de gênero, raça, credo ou titularidade.

Impossível Calar a data: em cada mulher, uma digital, uma cicatriz, uma sombra, um resíduo histórico, paralelos a um conjunto de provocações e possibilidades à ressignificação do modelo social em curso.

Dados históricos trazem rascunhos sobre os modos de vida das primeiras comunidades humanas, denominadas matrifocais, há 150.000 anos a.C., aproximadamente. Naquelas comunidades, as mulheres e as crianças eram naturalmente reconhecidas, respeitadas e tinham a proteção dos homens. Não havia casamentos monogâmicos. A paternidade era desconhecida. Os nomes das crianças e os bens eram transmitidos pela linhagem materna. As crianças, os depósitos de grãos e as provisões de comida pertenciam à comunidade. As mulheres encarregavam-se da manutenção e cuidados, haja vista que estas eram conhecedoras dos mistérios da vida, da morte por vivenciarem em seus corpos os ciclos menstruais, o ato de parir... Naturalmente mantinham íntimos diálogos com a Mãe Terra sobre o poder curativo das ervas e como usá-las nos cuidados com doentes e moribundos. Naquelas sociedades, as mulheres também eram mediadoras entre os humanos, os espíritos da Natureza, os ancestrais e os seres sobrenaturais. Por milênios, foram parteiras, benzedeiras, sacerdotisas, profetizas, encarregadas das festividades de plantios e colheitas, dos ritos de passagem, das bênçãos, das proteções, das previsões e dos cultos aos mortos.

Com a descoberta dos metais (10.000/a.C. a 476/d.C.) aquelas sociedades avançam na invenção de ferramentas e de armas. A agricultura se expande. Surge a propriedade privada. Os homens se tornam proprietários da terra, de escravos, de vulneráveis e se apropriam também das mulheres que perdem o prestígio anterior e já não são reconhecidas como semelhantes aos homens; são excluídas do processo produtivo e condenadas à função reprodutora e escravista. A sociedade se divide entre senhores e escravos. Na sequência dos fatos, o feudalismo (476 a 1.500/d.C.): as mulheres, embora herdeiras, seus bens são administrados pelos homens. Se era rica, pagava os privilégios com a subordinação. Segue o mercantilismo (1.500 a 1.750 d.C.): mulheres continuam dominadas e destinadas à reprodução. Em paralelo, instala-se o capitalismo (1.700 d.C. até hoje). Nada mudou na vida das mulheres. Seguem dominadas e exploradas: ganham menos, dificilmente ocupam cargos de importância e de responsabilidade; quando ocupam, continuam submetidas às regras do patriarcado.

Do exposto, é um pouco do que buscamos para fundamentar as razões das lutas e resistências feministas ao atual modelo. São ecos que nos tiram o sono e ao mesmo tempo nos instigam cantarolar aos quatro ventos nossa liberdade amordaçada.

Consideramos importante o eco do Escritor e Jornalista Uruguaio, Eduardo Galeano, contra o massacre às mulheres:

“Durante 20.000 anos, aproximadamente, as mulheres sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam; os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles para servirem de abrigo. Assim era a vida entre os índios Onas e Yaganes, na Terra do Fogo.

Um dia, chegaram os invasores, armados de cruzes e espadas, falando de um deus todo poderoso que criou o homem a sua imagem e semelhança, e dava aos homens poderes para dominar a terra e tudo o que tivesse sobre ela.

A partir daí, os homens começaram a matar as mulheres... Somente as meninas recém-nascidas se salvaram. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas que continuam acreditando até hoje”.

O contexto em pauta dialoga também com a denúncia de Frei Betto a discriminações às mulheres através dos tempos e templos. Afirma o Franciscano: “No Renascimento, bispos e teólogos defenderam que a mulher é ‘naturalmente’ inferior ao homem, destinada a obedecer-lhe. Por isso não podia exercer funções de poder como sacerdócio. Questionado se o escravo liberto podia ser sacerdote, São Tomás de Aquino, meu confrade, respondeu que sim, pois o escravo é “socialmente inferior”, enquanto a mulher é “naturalmente inferior”.

“Quanta boniteza!” Certamente diria o Educador Paulo Freire aos acordes masculinos na orquestragem de canções libertadoras às controvérsias do patriarcado. Não temos dúvidas: todo esse anunciado imortalizar-se-á nas cantorias das fêmeas do aqui, do agora e das que virão. “A história é tempo de possibilidades”, reafirma o Educador.

Esperançar com ativismo é o sopro insistente de nossa flauta pelo direito à vida com dignidade. Insistimos no Feriado, 08 de março - Dia Internacional de Luta das Mulheres. Dizemos NÃO - mesmo por um dia - a quaisquer atividades funcionais/produtivas que nos impeçam de celebrar livremente o dia a Nós consagrado.

O lamento de nossa flauta se afina ao coral das cigarras e a ecos matrifocais até que todas sejamos livres! 8 de Março fechado! A gente faz feriado!

Suportes libertários

Revista O Mensageiro - CIMI/CNBB, 1990.

O Anuário da Grande Mãe. Mirella Faur/2015.

Mulheres. Eduardo Galeano. Porto Alegre/2001.

Resistência, Lutas e Conquistas. Frei Betto/in Mulheres no Brasil. João Pessoa/2006.

* Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

 

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