“Este povo me honra com os lábios...”

"[...] cestas básicas viraram coleiras sobre milhares de empobrecidos, de subalternalizados: estratégicas moedas de troca à comercialização de voto..."

13/12/2023 às 13h18 Atualizada em 18/12/2023 às 17h21
Por: Redação
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Foto: AGECOM/AM
Foto: AGECOM/AM

Há mais de setenta anos, a cada dezembro, o discurso que abusa meus ouvidos não muda: Feliz Natal e Próspero Ano Novo! A tendenciosa repetição dos conceitos subjugara a massa a dogmas sistêmicos em proveito de grupos dominantes.

Dados históricos revelam que o anestésico linguístico (Feliz Natal e Próspero Ano Novo) fora injetado a partir do século IV, quando intenções colonizatórias, religiosistas/mercadológicas contaminaram povos e comunidades, criminalizando a espiritualidade das antigas sociedades e respectivas festividades natalinas.

Até o século citado, aquelas sociedades dedicavam as datas, 21 a 22 de dezembro, para celebrações universais - o solstício de inverno: um festival dedicado aos deuses solares e da vegetação. Na Obra, “A Religião da Grande Deusa”, Cláudio Quintino esclarece: “Foi justamente para aproveitar dessa antiga data festiva que os católicos instituíram a celebração do nascimento de sua criança divina justamente no dia 25 de dezembro”.

Não pretendo discorrer sobre questões religiosas; fogem ao meu alcance. Meu trato com o Divino se dá no diálogo com a Vida que me cobra insistentemente luta por acolhimento, igualdade, solidariedade, liberdade, justiça, paz... Valores que, dificilmente encontramos nos templos e em sistemas religiosos. O assunto visibiliza o tanto de seitas e templos espalhados pelo mundo, assim como o número de arrebanhados, em maioria analfabetizados e desvalidos. Proporcionalmente aumentam rebanhos e pastagens; o uso e o abuso em nome do Divino. Já dizia Palmério Dória, jornalista e escritor, originário de Santarém (PA): “Templo é dinheiro”.

Em conformidade ao presente cenário, a modernização ou a cristianização do natal abrira-se a práticas mascaradas de caridade sobre populações empobrecidas. Tais práticas, em maioria até abusivas e humilhantes, são utilizadas pelas classes dominantes em nome do Menino Jesus.

A propósito, quando o imperador Constantino se tornou cristão unificou religião e política; daí a caridade, virtude teologal, sofreu um acentuado desvio semântico: deixou de ser, conforme a ética universal humana, “o amor que move a vontade à busca efetiva do bem de outrem, identificando-se com o amor divino”, tornando-se filosofia de uma indústria santa que concede indulgências a românticos exploradores e condena à mendicância pecadores explorados. E como coadjuvante do Estado, a religiosice vem administrando com profissionalismo e espirituosidade os ditames do caridosismo neoliberal. Por esse olhar, Paul Lafargue, no artigo, “Por que crê em Deus a burguesia”, reafirma: “A caridade é a cínica expectativa que corrompe o pobre, envilece a sua dignidade e acostuma-o a suportar com paciência sua iníqua sorte”.

A reboque do cínico caridosismo, da vulgarização sobre as memórias do Nazareno, cestas básicas viraram coleiras sobre milhares de empobrecidos, de subalternalizados: estratégicas moedas de troca à comercialização de voto. Recursos públicos, resultantes de taxas e impostos (devidos ou indevidamente) tirados da classe trabalhadora, que deveriam ser aplicados em políticas públicas à qualidade de vida digna da população e em efetivação da Justiça Social, são transformados em poderosa manutenção à garantia de poderes a nulidades políticas.

Essa posição por nós assumida, encontra apoio em Marx: “A fome é o resultado da centralização de forças produtivas a serviço de uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem determinadas formas de consciência social: os alimentados e os famintos”. Se há porção de cabocos sem farinha pro chibé, dependentes de cestas básicas acompanhadas de um único frango congelado, é porque há paióis privilegiados, abarrotados de farinha. Sobram, portanto, as migalhas de banquetes e comemorações regados com dinheiro público.

Causa-nos também estranhamento o desperdício de dinheiro público com arranjos, ditos natalinos, nas UBs e centros de saúde, haja vista a precarização de insumos para urgências e emergências na Atenção Básica. Enquanto o sistema abusa em extravagâncias inúteis, uma população desvalida rasteja por atendimento, crente no “reino de justiça”, prometido nos discursos natalescos. Passada a farsa natalina, o luxo vira lixo: mais contaminação à Mãe Terra; mais prejuízos à saúde pública.

Do exposto, espera-se dos propagadores do natal cristão, posturas combativas às injustiças sociais ao mesmo tempo provocadoras de transformações estruturais.

Trago, por fim, o anúncio soberano de José Saramago: “Outro mundo é possível sim, quando os conceitos de Democracia, Justiça e Esquerda forem reinventados, e quando o nome de Deus deixar de ser invocado em vão”.

Por: Fátima Guedes 

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia com Especialização em Estudos Latinoamericanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

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