Era final de tarde... O céu cobria-se de um cinzento enfumaçado denunciando a inquisição agronazista sobre as Terras Baixas do Amazonas.
Naquela ocasião, trios elétricos, explosivos e bandeiradas confirmavam abusos indiscriminados e descarados por disputa de poderes e domínio de recursos públicos.
O agressivo cenário totalmente ignorado pelo rebanho comandado pela politicagem impedia a concentração de alunos em sala de aula, numa escola pública de periferia. Entre desinformação e sarcasmos, a curuminzada* se rebelara e verbostejava palavrões afrontosos contra aquela prática denominada eleições municipais.
Eram vocábulos do tipo: “Que bagunça!”; “Que esculhambação!”; “Quanta sacanagem!”; “Isso é coisa de ladrão, de vadio!”. Assim, os futuros cidadãos denominavam o ato dito político; além de outras qualificações proibidas nestes rascunhos. Pode dar coisa!...
- Que coisa!!!... Exclamara a diretora censurando a “desordem e a falta de respeito” dos alunos.
Impressionante! A “coisa” também constava no discurso dos alunos referindo-se à prática abusiva da propaganda eleitoral: “Coisa de ladrão, de vadio!”.
De repente, a “coisa” da diretora e dos alunos prendeu nossa atenção: eram os populares coisando o discurso da “política”. Coisa?!... Qual a origem do termo e que conteúdos carrega em sua forma?!...
Naquele contexto, a coisa foi entendida como algo indefinido, desprezível, incômoda que atrapalha, confunde, agride... Seria isso?!...
Recorremos à competência linguística: “coisa” vem do latim -“o que existe ou pode existir; objeto inanimado”. Logo, inanimado é algo morto; aquilo que não tem sentido; sem alma, sem vida. No popular, segundo o Aurélio, coisa é “indisposição indeterminada; troço”.
Então, coisa é isso... E haja coisas atufalhando a história, contaminando entidades, programas de governo, política, a cidadania, a coisa pública...
O quê?!... A coisa transgredindo a coisa... Pode?!... Coisas do arco-da-velha! É muita coisa pra nossa cabeça!
O painel que nosso sistema republicano oligárquico vem produzindo como expressão política, desde sua implantação, nos permite esse entendimento, essa interpretação.
É a coisificação da política dita pública. É o que está aí: a balbúrdia, a corrupção, a violação dos princípios democráticos, a manipulação inescrupulosa sobre a massa intencionalmente analfabetizada.
Por conta dessa “coisa”, Rui Barbosa tornara-se um crítico contundente, vindo a renunciar ao cargo de senador, aos 21 de março de 1921, por sentir-se cansado, exausto, desanimado e vencido na luta em defesa da democratização do País.
E, com precisão e simplicidade vocabular, o Intelectual, Advogado, Jornalista, Diplomata, Orador e Escritor Brasileiro, construiu a antítese - Política x Politicalha: leitura ímpar em tempos de coisificação!
A rebeldia de Barbosa provoca discernimento coerente à compreensão e definição dos extremos que determinam nossa opção enquanto sujeitos políticos: “Política é o exercício normal das forças de um povo consciente e senhor de si mesmo. Politicalha é o envenenamento crônico dos povos negligentes e viciados; é a malária dos povos de moralidade estragada”.
Que coisa!!!...
Falares de Casa
Curuminzada – De origem tupi; coletivo de meninos.
Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora Popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.
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