A Amazônia hoje rima com insônia: o atual padecimento de 28 milhões de habitantes. Os números envolvem apenas vidas humanas. Padecimentos maiores e piores afetam violentamente outras vidas - florestas, águas, ar, bichos, microrganismos... - os sustentáculos da vida e da saúde universal. A temática em pauta pode até parecer pessimista, no entanto, é mais um clamor frente à crise ambiental mundial que se descortina diante de nós.
Apesar das insônias experienciadas por nativos e lideranças na Amazônia desde o início da colonização, o ano passado, 2023, quando a destruição dos biomas atingiu o pico da violência, em consequência de injúrias silenciadas, surgem despertares em forma de gritos dispersos no sentido de um retorno quase impossível e/ou irreversível ao sistema original.
Entre outras tantas denúncias proféticas, em 1979, “O Ano Passado”, de Roberto Carlos, trouxera ecos amazônidas perdidos nos entorpecimentos de ópioscapitalistas. Sabe-se que denúncias ganham sentido de valor, quando apoiadas em princípios éticos universais* e apontam comprometimentos com transformações alinhadas a direitos pluriversais. Do contrário, não vencem, não convencem; não formam nem transformam: focam no comércio da informação propositalmente desinformada sobre a realidade.
A Amazônia, hoje, configura-se num cenário de destruição via ambições mercantis sem quaisquer intervenção ou fiscalização por quem de dever e direito. Entre outras, cito ALCOA, ENEVA e recentemente a Empresa Potássio do Brasil. Por essa via de abusos negligenciados nas instâncias dos Poderes, comparamos a Amazônia à virgem cobiçada, seduzida e abusada por estupradores disfarçados em protecionistas. Sob entendimento de grupos contaminados pela ética de mercado*, infelizmente, a questão se apresenta como inovações desenvolvimentistas.
Assim tem sido! Durante todo o período de colonização da Amazônia (1600 a 1823) a dominação cravou as garras sobre a presa indefesa, recém-nascida e açambarcou memórias, sabedorias, culturas, falares, jeitos comunitários e sustentáveis de convivência com a biodiversidade, transformando o Templo de Tupana* em balcão de negócio empresarial. Há 424 anos, a corrida por dominação com sucessivos assaltos genocidas disparara esmagadora sem tempo para que os povos originários firmassem e alinhassem identidade cultural, histórica, política a um efetivo e autônomo enfrentamento aos invasores; ao mesmo tempo, libertando-se do alucinógeno colonizante de que o nativo é inferior ou submisso aos ditos senhores.
O caos que se revelou ano passado, 2023, reafirma a superficialidade das mídias mercantis com “gritos de alerta” jogados às massas: não adubam ou recompõem a original culturalidade ambiental; muito menos reflorestam desertificações mentais para um agir interventivo e transformador. No entanto, fuzis e metralhadoras estouram com maior rapidez e crueldade contra populares interventores. Assim se fez comAjuricaba, com os Waimiri Atroari, com Ir. Cleusa Carolina Coelho, Chico Mendes, Ir. Dorothy, BrunoPereira, Dom Phillips, Zé Cláudio, Maria do Espírito Santo... e tantas Outras Vidas que ergueram a clava em defesa da Amazônia.
O empenho de nossos Mártires fora além do discurso institucionalista e da poética enlatada. Foi batismo de sangue! Ainda assim, a cegueira social da grande maioria de cabocos e cabocas ignora o massacre. O que está posto em processo acelerado: Domínio de latifúndios, do agronegócio e corporações manufatureiras produzindo devastações, envenenamentos, fumaceiros: além do sufoco aos pulmões, enlutam o céu impedindo a visão clara do sol;
Pedidos de socorro de centenárias e raras espécies abatidas por motosserras ensurdecendo a selva estuprada;
As deformações estruturais do relevo e da sociedade -frutos da violência de mineradoras, garimpos e etc. -acenos para o mundo denunciando as malditas licitações; por fim, os restos mortais da cultura indígena alinhados ao modelo mercadológico já não permitem ao olfato e à lucidez crítica identificar a presença fresca de fósseis legitimamente ameríndios.
A Amazônia das Amazonas, do Uirapuru, da Cobra-grande, do Boto-vermelho, do Peixe-boi, do Pirarucu, do Japiim, da Vitória-régia, das matas virgens, dos lagos, rios e igarapés, igapós, das Curandages*... a Amazônia de nossos Mártires está predestinada à lista de regiões lendárias que submergiram ao massacre capitalista.
Reconquistar/reinventar a Amazônia a partir de diálogos originários é um desafio. Garantir às terras baixas o direito ao fruto da árvore da vida, a partir de intervenções originárias e populares são prenúncios a longo prazo e, sem dúvida, acompanhados de outros batismos de sangue.
A marcha deu largada a partir de nossos Mártires. Brotos germinam, mesmo de forma anônima e sutil...Trabalho de parto longo e doloroso...
Que as agressões à Amazônia cujos efeitos afetam asaúde universal provoquem a cabocada transgredir as transgressões sistêmicas reafirmando na práxis aprofecia do Educador Paulo Freire: “A história é tempo de possibilidades. O mundo é dos povos; não dos impérios”.
Impossível continuar na piema*!
Falares de Casa
Curandages: Sabedorias tradicionais; jeitos naturais de cuidados com a saúde
Ética de Mercado: “Valemos tanto quanto esteja sendo ou possa ser o nosso poder de compra. Tanto menor o poder de compra quanto menos poder ou crédito tem nossa palavra. As leis do mercado sob cujo império nos achamos, estabelecem com rigor, o lucro como seu objetivo precípuo e irrecusável”. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. UNESP, 2000.
Piema: Estado de dormência; preguiça, no popular caboquês.
Princípios éticos universais: “[...] luta em favor dos famintos e destroçados, vítimas da malvadez, da gulodice, da insensatez dos poderosos [...] direito de ir e vir, direito de comer, de vestir, de dizer a palavra, de amar, de escolher, de estudar, de trabalhar. Direito de crer e não crer, do direito à segurança e à paz”. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. UNESP, 2000.
Tupana: Deusa dos povos nativos da Amazônia.
*Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.
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