Do Luxo ao Lixo

O luxo vem do lixo. A lixeira está cheia de luxo. (Djalma A. Moura - Educador de Dança/SP)

04/07/2024 às 19h50 Atualizada em 06/07/2024 às 06h44
Por: Redação
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Obra de arte de Iran Martins abordando o problema dos resíduos sólidos em Parintins - Foto: Floriano Lins
Obra de arte de Iran Martins abordando o problema dos resíduos sólidos em Parintins - Foto: Floriano Lins

Entre luxo e lixo não há diferença. Há máscara. Grafia e fonética se entrelaçam, disfarçam semânticas confundindo percepções, efeitos e práticas comportamentais. Por esta via reflexiva, em 1966, o Poeta Augusto de Campos mergulhou na sincronicidade dos referidos conceitos, aparentemente opostos, e gestou o concretismo poético Lixo.

Na verdade, a oposição dos conceitos encontra-se nas vogais [i] e [u]. Luxo [luxus] provém do latim - opulência, fausto manifestados em padrões artificiais de modismos, embelezamentos, grifes, objetos, negócios... Lixo, também vem do latim [lictum] - restos, sobras, coisas consideradas inúteis e/ou sem valor apreciável produzidos por humanos; tudo o que é prejudicial e clama por eliminação. Enfim, o lixo é filho do luxo.

Registros pontuam o luxo como a máscara das classes privilegiadas: mecanismo de impor autossuficiência, superioridade, distinção sobre populações desvalidas, marginalizadas em direitos fundamentais e coletivos. É um estereótipo configurado em objetos, indumentárias, espaços residenciais, folias, cerimônias, banquetes, rituais religiosos, celebrações de várias ordens e perfis: familiares, políticas e de entretenimentos.

Por essa passarela, glamoures ofuscantes do luxo embriagam consciências, bloqueiam a criticidade social sobre a cumpliciosa relação. Na sequência, o lixo se rebela como o gêmeo marginalizado, desprezível, expurgado...

Considerando-se que luxo e lixo são frutos da mesma matriz ideológica, o lixo se transformou em sobrevivência/subvivência de populações condenadas à miséria, haja vista os processos de auto contaminações por dogmas de luxuosidades produzidos nas várias instâncias do sistema cultural, político, religioso e etc.  A cada fantasia ou glamour esgotados, a cada ilusão de ótica sobram restos, farelos, dejetos - matéria prima contaminada disponível é disputada entre milhares de desvalidos, exércitos de famintos, de subservientes espalhados em periferias rastejando-se por míseras brechas sob ilusão de enganar a fome e necessidades fundamentais.

O presente desabafo flui de nossa indignação: direito de erguer a voz quando a Justiça Social é silenciada nos bastidores das mídias e dos poderes constituídos em acobertamento a cumplicidades ideológicas. Trata-se da morte de Carlenilson Andrade de Souza, 43 anos, catador de lixo (referência profissional), no lixão do Distrito Industrial de Parintins/AM, entorno da Universidade do Estado do Amazonas, na madrugada de 26/06, quando o Catador, antecipando-se a centenas de concorrentes dormira no lixão aguardando restos de luxúrias, fora atropelado brutalmente por um caminhão transportador.

Naquela noite, a Capital Brasileira do Folclore (referência à cidade de Parintins/Am) iniciava os rituais ditos folclóricos confundindo percepções sobre cultura popular e entretenimento de massa. Em decorrência, a tragédia sobre a vida de Carlenilson fora abafada por roncos ensurdecedores de tambores, de foguetes e de luxúrias festivalescas. Silêncio total sobre a sobrevivência/subvivência dos familiares da vítima.

Até a elaboração desses rascunhos, nenhum murmúrio de quem de Dever e do Direito! Hipocrisia responsabilizar apenas o motorista do caminhão... 

Impossível negligenciar a ausência de políticas públicas à destinação de resíduos produzidos pela população, assim como de condições justas e dignas a categorias sobreviventes/subviventes de restos de luxos descartados.

A festa acabou, a luz apagou, tambores silenciaram, mas a ressaca continua: cunhantãs em pânico com o sumiço da menstruação; nas torneiras, pinga-pinga a água contaminada; nas periferias abandonadas os urubus amenizam a podridão das lixeiras...

De resto, só silêncio! O luxo/lixo contaminando eleitores, dominando consciências e empoderando a politicagem local.     
 
Por: Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

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